Nem todo fabricante tem dado atenção a esse elemento que interage com o motor na definição do câmbio
Câmbios
curto e longo, escalonamentos fechado e aberto: o que tudo isso
representa para o automóvel e seu motorista? É o que vamos esclarecer
para você a seguir.
Os conceitos de câmbios curto e longo dizem respeito
à velocidade do veículo em relação à rotação do motor. Já os câmbios
aberto e fechado são definidos pelo intervalo numérico entre as
marchas, ou escalonamento. Esses elementos podem perfeitamente
misturar-se entre si. Pode haver câmbio curto de escalonamento aberto
ou longo de escalonamento fechado, como é possível também curto de
escalonamento fechado ou longo de escalonamento aberto.
Quando se trata de transmitir força motriz às rodas,
a missão do engenheiro é promover um "casamento perfeito". Seu objetivo
é calcular as relações de transmissão de maneira a aproveitar o melhor
possível dos dotes do motor. Não se ganha desempenho com um cálculo
perfeito, mas pode-se perdê-lo se for errado.
O escalonamento pode ser visualizado como uma escada
e seus degraus: degraus mais altos seriam o escalonamento aberto, e
mais baixos, o fechado. Chama-se staging em inglês e étagement em
francês, ambas as palavras indicando estágio. Os italianos, com seu
poético idioma, o chamam de escalonamento fechado de raviccinato —
avizinhado, aproximado.
O escalonamento é ditado pelas características do
motor. Como regra, a cada troca ascendente de marcha feita na rotação
de potência máxima, a rotação deve cair no máximo para a de torque
máximo, jamais abaixo desse ponto. Isso porque é entre esses dois picos
de rotação, o de torque e o de potência máximos, que a potência se
desenvolve mais rapidamente.
À medida que a velocidade sobe, porém, a resistência
do ar cresce de maneira desproporcional — ao quadrado. Por exemplo, a
resistência do ar a 160 km/h não é o dobro de a 80 km/h, mas quatro
vezes aquela. Desse modo, os intervalos (os degraus) entre as marchas
precisam ser cada vez menores, para que o motor fique em condição de
produzir potência cada vez maior após cada troca ascendente.
O degrau, ou razão entre duas marchas, resulta da
divisão da relação numericamente mais alta pela mais baixa. Ou seja, se
a terceira é 1,45 e a quarta é 1,12, o degrau, após fazer a conta, é
igual a 1,29. Conhecendo-se todas as razões, pode-se saber facilmente
as quedas de rotação nas trocas ascendentes. Como a relação de
transmissão indica as voltas de uma engrenagem por uma da outra,
exprimem-se as relações de marcha em n:1. Como está descrito acima,
seriam 1,45:1 e 1,12:1.
Como exemplo, tomemos um carro hipotético cujo motor
tem potência máxima a 6.000 rpm, torque máximo a 3.200 rpm e um câmbio
típico de 5 marchas bem escalonado. As quedas de rotação ao trocar as
marchas a 6.000 rpm seriam: primeira para segunda, 3.500 rpm; terceira,
4.000 rpm; quarta, 4.400 rpm, e quinta, 4.800 rpm. Portanto, está
atingido o objetivo de vencer a resistência do ar com intervalos cada
vez menores.
Por onde começa
O ponto de partida do escalonamento é determinar a relação de primeira
marcha para vencer rampas. Considera-se como mínima capacidade uma
rampa de 30% com veículo carregado. O cálculo leva em conta torque,
relação da primeira, relação do diferencial, raio da roda (já
determinado no início do projeto) e peso, por meio de um cálculo
relativamente simples. A etapa seguinte é calcular que velocidade o
veículo pode atingir, tomando por base a potência do motor, o
coeficiente aerodinâmico (Cx), a área frontal e a resistência de
rolamento. Para as engenharias das fábricas, isso é relativamente
fácil, sobretudo com os atuais softwares específicos para esse cálculo.
É importante notar que, nesse cálculo, não entra
nada de relação de marcha ou de diferencial. Depois de saber qual a
velocidade máxima, é estabelecida a relação total da última marcha,
também um cálculo simples. Nesse momento, ocorre o "casamento", quando
a redução é calculada de maneira que a velocidade máxima coincida com a
rotação de potência máxima. A primeira parte do escalonamento está
então definida: sabe-se qual é a relação da primeira e a da última
marchas.
É fundamental saber que a relação de cada marcha
combina-se com a do eixo motriz (comumente chamada de relação de
diferencial, porque ali se encontra esse par de engrenagens, mas o
termo correto é relação do eixo motriz). Essa combinação dá-se por
multiplicação, e não soma, como pode parecer à primeira vista. Por
exemplo, se a relação de primeira é 4,0 e a do eixo motriz é 4,5, a
redução total é 4 x 4,5, que é igual a 18 (18:1).
Haver duas reduções na transmissão é necessário por
dois motivos. Um, porque ficaria fisicamente inviável acomodar grandes
reduções dentro do limitado espaço da caixa de câmbio. Se, por acaso, a
redução total da primeira for 18:1, a engrenagem maior (conduzida)
seria muito grande, como 126 dentes, considerando sete dentes na
engrenagem menor. O outro motivo é o esforço sobre os dentes da
engrenagem menor (condutora), que aumenta muito em relações acima de
5:1. Ambas as dificuldades são contornadas dividindo a transmissão de
força motriz em um sistema de duas reduções — uma na caixa de câmbio e
outra no eixo motriz.
Mas há uma terceira razão, de natureza prática, para
dividir a redução total em dois sistemas de engrenagens. Fica possível
alterar apenas uma delas, a do diferencial, e com isso obter efeito em
todas as marchas. A indústria automobilística usa bastante esse
recurso. Exemplificando: o câmbio do Fusca 1300 trazia relação de
diferencial 4,37:1, e o do 1500 e do 1600, relação 4,12:1 (depois
3,88:1). As quatro marchas eram exatamente iguais, mas não o efeito
final, que dependia da relação do eixo motriz.
De volta ao escalonamento, entre a primeira e a
última marchas definidas haverá tantas quantas forem necessárias em
função das características do motor. Em teoria, no caso dos carros de
rua: a elasticidade dos motores atuais torna mais do que 5 marchas um
exagero. É por esse motivo que os câmbios de 5 marchas imperam há
tantos anos.
Não há razão para que, por exemplo, os avantajados
motores V8 de 6.0 litros do Chevrolet Corvette e V10 de 8.4 litros do
Dodge Viper sejam combinados a 6 marchas. Ou que a Mercedes-Benz use 7
em diversos modelos, e a Lexus, 8 marchas no LS 460, nesses casos em
caixas automáticas. A rigor, 6 ou mais marchas só se justificam em
carros de competição ou em motocicletas, cujos motores são projetados e
desenvolvidos para potências específicas elevadas e, por isso mesmo,
possuem faixa de operação útil muito estreita.
Ora, mas qual o inconveniente de ter marchas a mais?
O primeiro: precisar trocar demais de marcha é desagradável,
especialmente no transito urbano. Só mesmo na condição de aceleração
vigorosa é que alguns motoristas podem apreciar essa necessidade, por
gostar de ouvir o motor a cada mudança. Para esses, é bom saber um
segundo inconveniente: muitas trocas podem atrapalhar a aceleração,
pois cada uma representa perda de tempo, algo próximo a 0,8 segundo.
Exemplo de inadequação para o uso normal foi o Fiat
Siena 1.0 litro de 6 marchas, produzido de 1998 a 2000. Quando está a
90 km/h, que marcha se deveria passar para uma ultrapassagem? A
terceira estava fora de questão, pois atingia apenas 80 km/h. Tinha-se
de decidir — segundos antes de ultrapassar — pela quarta, que só ia a
104 km/h, ou pela quinta, que chegava a 131 km/h. Claro que a marcha
recomendável seria a quinta, para evitar uma troca durante a manobra.
Mas quem pensaria nessa marcha a 90 km/h?
Há quase meio século, quando o Renault Dauphine com
motor de 845 cm³ foi lançado, houve muita crítica pelo fato de o câmbio
trazer apenas 3 marchas — pois o líder do mercado, o Fusca, tinha 4.
Entretanto, quem o dirigia notava que as 3 marchas davam conta do
recado muito bem, pela extraordinária elasticidade do pequeno motor de
26 cv. Quando surgiu o Gordini, de maior potência (32 cv) com a mesma
cilindrada — portanto, maior potência específica —, a elasticidade
diminuiu e foi preciso partir para a caixa de 4 marchas.
Questão de conceito
Como mostramos, o número de marchas deve ser definido em função das
características do motor. O mesmo vale para o escalonamento aberto ou
fechado, para um mesmo número de marchas. Como os próprios nomes
indicam, as diferenças numéricas entre as relações são maiores no
primeiro caso e menores no segundo. Conceitualmente, motores mais
elásticos, de faixa de funcionamento mais ampla, aceitam bem
escalonamento aberto. Já os de menor elasticidade, de temperamento
esportivo, pedem escalonamento fechado.
É por isso que muitos carros de 6 cilindros
funcionam bem com apenas 4 marchas, tanto em caixa manual quanto em
automática — mas não todos. O Alfa Romeo 156 V6, com um 2.5 litros de
alta potência específica (77 cv/l) que atingia a potência máxima a
6.300 rpm e o torque máximo a 5.000 rpm, era um exemplo: as 4
velocidades da caixa automática Q-System estavam espaçadas demais para
as características esportivas do motor.
Mas os escalonamentos aberto e fechado não podem ser
considerados como definições absolutas. Um câmbio aberto num motor de
baixa cilindrada vira fechado em um de alta. Quem tem experiência com
utilitários 4x4 com caixa de redução provavelmente já notou como o
efeito do câmbio muda quando a reduzida está em uso: parece que se está
dirigindo um carro com caixa de competição. Isso ocorre porque a
multiplicação do torque é tal que se torna abundante para aquela
situação.
Aumentar o número de marchas ou fechar o escalonamento, sem
necessidade, nada resolve. Caixas "fechadas" não são práticas para os
carros de rua, uma vez que resultam sempre no uso da última marcha para
velocidade máxima e deixam a primeira longa demais. Outro erro comum é
associar baixa cilindrada a pouca elasticidade e fechar demais o
escalonamento.
Chega um momento em que o engenheiro tem de escolher
um entre dois caminhos: atingir velocidade máxima na última marcha ou
na penúltima. Se optar por uma solução intermediária, o desempenho
sofrerá — em geral, a velocidade máxima é inferior à que o veículo
seria capaz de atingir. Só que não é uma escolha dele apenas: o setor
de marketing tem enorme peso nessa decisão.
Um engenheiro consciencioso cuidará para que a
velocidade de viagem seja confortável do ponto de vista de rotação do
motor. Como no Brasil viaja-se hoje a 120 km/h por várias rodovias, a
essa velocidade o motor deveria estar girando sem grande esforço, entre
3.000 e 3.500 rpm. Um carro com motor de 1.0 litro que chega a 160
km/h, cuja potência máxima se dê a 6.000 (rpm?) (26,6 km/h por 1.000
rpm), não cairá nunca nessa faixa, pois estará a 4.500 rpm em quinta.
Já um 2.0 litros capaz de 190 km/h, com potência
máxima a 5.500 rpm e que atinja a velocidade final em quinta nessa
rotação (34,5 km/h por 1.000 rpm), significará 120 km/h a 3.480 rpm
nessa marcha. Mas se o engenheiro, nesse caso, exagerar no curto e a
velocidade máxima vier a ocorrer a 6.000 rpm (500 rpm acima da rotação
de maior potência), por exemplo, 120 km/h corresponderão a 3.800 rpm, o
que ficará longe do agradável. Em compensação, a 2.000 rpm o carro
estará a apenas 63 km/h — e poderá transpor lombadas em quarta...
Para evitar o erro do câmbio curto demais, é
possível que o engenheiro o alongue sem o devido critério. Por exemplo,
uma quarta de 32 km/h por 1.000 rpm permitirá 190 km/h com o motor a
5.950 rpm (450 rpm acima da rotação de potência máxima), enquanto uma
quinta de 38 km/h por 1.000 rpm fará o veículo cruzar a 3.150 rpm a 120
km/h. A questão do conforto será atendida, mas com provável perda em
velocidade máxima.
E se for decidido partir para o extremo? Para casar
a quarta com a velocidade máxima e o motor na rotação de maior
potência, essa marcha poderá ser a antiga quinta (34,5 km/h por 1.000
rpm) e a nova marcha seria de 40 km/h por 1.000 rpm, produzindo 120
km/h a 3.000 rpm. Esse será um bem calculado câmbio 4+E, com a relação
exata da quarta para o melhor desempenho e a quinta apenas para cruzar
com menores ruído e consumo.
Esse pequeno exemplo mostra como tudo é uma questão
de conceito quando se trata de definir o escalonamento. O carro
hipotético do último cálculo sugerido teria uma terceira de 27 km/h por
1.000 rpm, que alcançaria 148 km/h; uma segunda de 18 km/h por 1.000
rpm, que atingiria 99 km/h; e uma primeira de 10 km/h por 1.000 rpm,
para 55 km/h. Com os parâmetros de um 2.0 litros típico e pneus
195/60-15, sua capacidade de rampa seria de 41%.
O leitor pode não ter notado, mas o que foi dito até
essa parte não entrou no mérito das relações das marchas e do
diferencial. É depois de definir todo o conceito que serão calculadas
as relações, de maneira que esses efeitos sejam produzidos.
Para finalizar, um exemplo prático: Corsa Wind 1.0
litro de primeira geração. Diante de queixas de baixo desempenho, a
General Motors decidiu refazer o escalonamento do câmbio. A quarta
marcha dos dois primeiros anos virou a quinta em 1996, ambas resultando
em algo próximo a 27 km/h por 1.000 rpm. Só não ficaram exatamente
iguais porque, em simultâneo à modificação, o diferencial passou de
4,53:1 para 4,31:1, resultando num efeito de quinta marcha quase 5%
mais longo.
Com a mudança, o motor não mais passava de 5.500 rpm
à velocidade máxima de 150 km/h (obtida com o motor de injeção
multiponto e 60 cv) 500 rpm abaixo da rotação de potência máxima.
Portanto, a velocidade final ficou abaixo do que seria possível, pois o
motor não chegava a desenvolver toda a potência nessa marcha. Apesar
disso, a 120 km/h o motor "gritava" a 4.500 rpm, o que também era
desagradável. Na primeira versão do Wind, de 1994, viajava-se a 3.700
rpm em quinta a 120 km/h (32,2 km/h por 1.000 rpm). A 145 km/h,
velocidade máxima com o motor de injeção monoponto e 50 cv de potência
a rotação chegava a 5.650 rpm em quarta, ainda 150 rpm abaixo do giro
de maior potência — não era perfeito, mas aceitável.
Como se pode ver, calcular os efeitos de um câmbio pode não ser tão
simples, mas também não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Isso é algo que
os fabricantes têm o dever de caprichar sempre.